30.8.08

Ímpar

Ela acorda para a segunda aula às oito horas. Abre os olhos, mão direita imediata no nariz.. Cidade seca, narinas feridas de sangue pouco nos lados de dentro. Dorzinha. Preguiça de levantar, quanta preguiça. Não podia se atrasar, não para aquela aula, não mais uma vez. Tirou o conjuntinho-pijama cor vermelha de bolinhas brancas, blusa e shortinho. Parecia um morango, engraçado. Entrou no banheio e tomou seu banho de vinte minutos, saiu e como quem cata feijões, blusa amarela três quartos com desenho de dragão indecifrável, calças jeans e papetes. Cabelos soltos compridos com um leve toque de mão, suficiente. A bolsa era carregada cruzada em seu corpo na altura dos quadris. Livros. E foi.
Solzinho simpático que aquecia delicadamente as pessoas da rua, coisa boa. Mas aquele ponto de ônibus parecia tão longe. Ai, ai...soltou.
Ele acorda às oito e quarenta com aquele dispertador de celular que já havia tocado há minutos e insistentemente, mas que ele não ligava. Pegou a primeira roupa em sua frente, calçou os sapatos tipo tênis, beges, camurça. A blusa polo amarelinha desbotada parecia perfeita com uma calça jeans qualquer. Café, café, café. Rapidinho na cafeteira elétrica, que invenção! E pronto, uma xícara. Escovou os dentes, passou a mão nos cabelos e agora sim, afazeres mais importantes. A mochila, preta com detalhes vermelhos trazia o mundo. Guardou o material do dia apressado: aulas,ensaios, diskman. E foi.
Jeitinho vagaroso, meio "endeoir" de ser e uma revista na mão. Três, quatro quarterões e lá estava o ponto. Perto para ele. Em frente a um buffet de cor vermelha. Preparado para a espera.
Lá ela vem preguiçosa da esquina, passos descompassados, um pouco rápidos e descontraídos e, à margem da casa vermelha, um desconhecido conhecido de algum lugar folheia uma revista. Ele sentava no primeiro banco também vermelho do ponto.
Ele olha, ela disfarça. Curiosa, põe seus olhos cor de verde sobre as voltas do assunto alheio. Senta no cano preto de sustentação do ponto; o sol, assim, não chega diretamente aos seus olhos. Tenta atentamente extrair a notícia, muito longe, a miopia não deixa. Ela tinha essa mania. Lembrou-se então que já havia tido aquela visão enquanto sentada clandestinamente no motor perto da porta de entrada do ônibus. Lotado. Seriedade charmosa, interessante. Mas dali nunca mais até hoje. Sorriu de lado sem ser notada. Desistiu de ler e cantarolou uma melodia sem ritmo exato e desafinada, mal sabia de quem se tratava ali ao lado.
Espera, espera. Nem sei quanto tempo de espera. E lá vem o ônibus verdinho, levantam-se os dois. Ela se arrisca a entrar primeiro. Proposital. Ao subir os degraus, ele avista aquela cena. Tatuagem nas costas bem ali no pequeno espaço entre a costura da blusa e o começo da calça.
Ela entra, passa a catraca e cogita um lugar lá no fundo, individual, estratégico, queria ver o que ele faria. Ele cai. Atrás, diagonal. A viagem então começa. Ele muito mal disfarça com a revista no colo, nada míope, finge ler. Tarde demais. Seus olhos já haviam sido roubados. Fisgados pela paisagem tímida da menina quase loira que sabia que era observada. Retribuía, ela. E olhava para trás a fim de confirmar suas suspeitas quanto àquele olhar que ela tanto gostava. Ele também. E foram namorando o caminho inteiro.
Era chegada a hora de descer então. Puxou a cordinha, percebeu alguma coisa. A mochila dele estava preparada num dos ombros, pronto pra levantar-se. Naquela vez do motor o ponto não era esse. Parou, pensou, entendeu. Ele desceria atrás dela. Deu um frio na barriga estranho, diferente de todos os de antes, afinal eram nove e pouco da manhã. Desceu. Não olhou pra trás, mas sabia que os passos vagarosos estavam a segui-la. Agora, notava, não tão vagarosos assim. Buscavam os dela.
Fez seu caminho, andou um pouquinho e virou para atravessar. Ele seguiu as instruções. Chegaram os dois ao outro lado da rua, quase onde ela desapareceria. Ele apressou-se e alcançou-a. Abriu um sorriso, tímido e simpático. A conversa pouca, suficiente porém para ele convidá-la para comer. Em cima da hora. Ela letras, ele música.Ela disse sim. Viraram as costas e a sensação de ridículo veio para os dois. Ela, pela cantoria horrorosa no ponto, rio de lado, foi pro seu mundo. Ele, por ter sido tão não-ele, não lhe ocorria tamanha cara-de-pau há tempos...não para essas coisas.Foi para o seu. Hora de ir.
Ele a esperava no final das escadas, pronto. Ela desceu sentindo-se princesa e o encontrou. pegaram ônibus. Conversaram sobre seus universos, simples,agradável. Comeram, conversaram. Reservados, os dois. Calmos a princípio. No ônibus...pensavam os dois silenciosamente...Você sempre come assim tão devagar? Eram só as histórias de seu sobrinho que não o deixavam comer mais depressa. Dia mais feliz. Telefones, despedida.
Daí tudo começou. Mal sabe ele agora que ela às vezes sentia vontade de chorar com as suas músicas ali sentada no chão ouvindo com cuidado, como da primeira vez em que foi à sua casa e pediu a ele que tocasse piano.Tão, tão bonitas. Mal sabe ele que ela gostava tanto do seu jeito de ser, de suas manias, do açucar espalhado, das roupas meio sem noção, até do terno, da intimidade que só ele sabe, da casa bagunçada.
Mal sabe ela que ele tanto fazia e ela se esqueceu de lembrar, que ele a achava tão bonita e interessante-mais ainda que quando a conheceu- que gostava das toalhas molhadas espalhadas por algum lugar e das roupas também meio sem cuidado, da falta de batom, do jeito dela de gostar de cachorros.
Mal eles sabiam. Mal ele sabia que ela escrevia, mal ela sabia que ele dava importância. Ele leu. Ela ouviu. Um era Letras, o outro era Música. Bonito par. Um par bonito. Perderam-se. Esquina. Mãos, cabelos, braços, olhar. O ralo preparado, à espera.

Jessica Blá

2 comentários:

Day Rodrigues disse...

irei ler mais algumas vezes...

e, prometo comentar com bastante cuidado, em breve!

=)

Day Rodrigues disse...
Este comentário foi removido pelo autor.